quinta-feira, 18 de novembro de 2010

O desrespeito às diferenças

No último final de semana prolongado, pudemos ver nos noticiários as agressões ocorridas nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. Quatro jovens foram agredidos na Avenida Paulista, em São Paulo, e um jovem foi baleado no Rio de Janeiro após a parada gay. Embora tenha sido negado pelos agressores, em ambos os casos há fortes indícios de que as agressões tenham ocorrido por homofobia, ou seja, por preconceito.
No caso das vítimas em São Paulo que foram agredidas por quatro jovens de classe média, eles relataram que os jovens partiram em direção a eles e começaram a agredir sem justificativas, apenas os chamando de ‘bichas’, ‘maricas’. O jovem baleado no Rio relata que um grupo de jovens gays foram ofendidos e humilhados por quatro militares. Os demais jovens foram liberados, mas ele e o parceiro ficaram retidos no local porque o seu companheiro estava sem o RG. Nesse momento foi empurrado e levou um tiro na barriga.
Situações como essas, embora sejam muito mais comuns do que possamos imaginar, nos chocam ao nos depararmos com a agressividade gratuita movida pelo desrespeito às diferenças e pelo preconceito.
A livre expressão é garantida pela constituição em países democráticos como o Brasil e consiste no direito da pessoa manifestar livremente opções, idéias e pensamentos. Entretanto este não foi sempre um direito garantido às pessoas no país. No período dos governos militares, a censura foi utilizada como forma de conter e impedir a publicação de determinadas informações que eram tidas pelo governo como ameaçadoras. Esse período foi marcado por extrema violência e forte repressão à liberdade de expressão. Na atual Constituição Federal, promulgada em 1988, várias inovações foram conferidas em relação a liberdade de manifestação do pensamento, dando maior amplitude no rol de direitos e garantias individuais.
Embora a liberdade de expressão seja um direito hoje garantido em constituição, ainda vemos constantemente manifestações de intolerância e extremismos.
Se expressar livremente, poder manifestar idéias e desejos em todos os espaços, acaba sendo confundido pelas pessoas como possibilidade de se fazer o que se bem entende sem se pensar que vivemos em uma sociedade, por isso, é necessário respeito ao espaço do outro e respeito às diferenças. Se expressar livremente acaba sendo entendido por passar por cima do outro. E nesse sentido, o que era para ser vivido como algo positivo, o fazer valer os nossos direitos, acaba se tornando manifestações violentas de radicalismo e preconceitos. E isso se dá por diversos grupos de ambos os lados como os gays, os negros, as mulheres, os pobres, os ricos, os cristãos, os muçulmanos.
Sociedade pode ser definida como o conjunto de pessoas que compartilham propósitos, gostos, preocupações e costumes, e que interagem entre si constituindo uma comunidade. Vale pararmos e refletirmos o quanto temos contribuido para a vida em sociedade ou o quanto temos contribuído para a disseminação da intolerância e preconceitos.

Valdeli e Ana Angélica

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

O Sentido da Vida

Desde a antiguidade, até os dias atuais, a busca pelo sentido da vida atravessa nossos pensamentos. Inúmeros filósofos, pensadores e religiosos vêm tentando responder essa questão, e como conseqüência diferentes correntes filosóficas e ideológicas foram construídas a partir das respostas encontradas.
Na nossa prática clínica, freqüentemente nos deparamos com esse questionamento. Afinal, qual o sentido da vida?
A dificuldade em responder a essa questão está assentada em um engano que cometemos, e o engano está em acreditarmos que existe uma única resposta a essa questão, de aplicabilidade universal.
O fato é que a resposta a essa questão não é dada “de fora pra dentro”, não pode ser dada pelo Outro, seja ele quem for, mas é uma resposta que é construída dentro de cada um de nós, a partir da singularidade de cada um.
O sentido da vida é sempre individual, ou seja, não há um sentido genérico, mas somente o sentido que a minha vida tem. Sendo assim, a pergunta que é possível de ser respondida é: “qual o sentido da minha vida?”
Para encontrar essa resposta é preciso que voltemos o nosso olhar para dentro, e que façamos reflexões apoiadas na análise de quem somos, do que desejamos, de quais são os nossos valores, quais as expectativas que temos, em que momento de vida nos encontramos e onde queremos chegar. O que dá sentido à minha vida, certamente não é o que dá sentido à vida do meu vizinho, do meu colega de trabalho, que certamente é uma pessoa diferente de mim, com experiências de vida diferentes e desejos diferentes. Assim também, o sentido da vida de um adolescente não é o mesmo que o de um homem aos 50 anos, nem tampouco o sentido da vida de uma mulher aos 30 anos que mora em uma pequena cidade do interior é o mesmo de uma mulher na mesma idade que mora em um grande centro urbano. A idade, a cultura, as possibilidades que cada um tem na sua vida vão interferir na construção dessa resposta.
Alguns podem argumentar que para determinados grupos, sejam religiosos ou ideológicos, é possível a constituição de um sentido de vida comum. Não é verdade, ainda que em alguns momentos a exteriorização de um determinado modo de ser possa nos levar a entender que isso seja possível. Na verdade, o que acontece nesses grupos é que as pessoas podem ter ideais em comum, e isso é diferente de ter um sentido de vida em comum. Os ideais que temos colaboram na construção do sentido da vida, mas são construtos diferentes. Ideal de vida é o que aspiramos, e sentido de vida é o entendimento que temos sobre a nossa existência, é a interpretação que damos para o que sentimos e vivemos. Podemos ter aspirações em comum, mas os significados que atribuímos a essas aspirações diz respeito à individualidade do nosso existir.
É importante que saibamos também que aquilo que dá sentido à nossa vida hoje, pode não dar amanhã, porque somos seres em constante processo de transformação e desenvolvimento pessoal e na medida em que mudamos, mudam nossos ideais e desejos.
Então, quando nos depararmos com essa pergunta, olhemos para dentro de nós mesmos, porque somente o olhar interno, e os novos olhares que temos sobre nós é que nos permitirão o encontro e a construção de significados para o nosso sentido de ser... e de existir!

domingo, 3 de outubro de 2010

Depressão na Infância e Adolescência

A depressão é um transtorno afetivo que acomete de 1% a 2% das crianças e de 4% a 8% dos adolescentes. É uma doença grave, uma vez que causa prejuízos em todas as áreas do desenvolvimento, podendo cronificar-se ao longo do tempo e colocar a própria vida da criança ou do adolescente em risco, uma vez que está associada ao aumento de incidência de suicídios nessa população.
O diagnóstico de depressão exige muito cuidado e atenção por parte dos especialistas, uma vez que sinais e sintomas sugestivos de depressão podem, em alguns casos, ser reativos a uma determinada fase de desenvolvimento. No entanto, faz-se necessário a atenção dos pais e profissionais que atendem essa população para a presença dos seguintes sintomas:
- irritabilidade
- aumento ou redução de peso e apetite
- sonolência
- dificuldade de concentração
- perda de interesse por atividades que despertavam prazer e satisfação
- isolamento social
- presença de pensamentos mórbidos
- mudanças bruscas de comportamento.
Quando observados esses sintomas, deve-se procurar um medico especialista em psiquiatria infantil, uma vez que em alguns casos o uso de medicação é fundamental. O acompanhamento médico cuidadoso, associado à psicoterapia e orientação de pais é o que vai permitir uma rápida remissão dos sintomas e um controle sobre a depressão.
Infelizmente esta é uma realidade que vem apresentando um crescimento constante sendo atualmente considerada uma questão de saúde pública. A rápida intervenção é o que evitará prejuízos profundos e permanentes em um momento que o paciente se encontra em pleno processo de desenvolvimento.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Algumas considerações sobre os (des) encontros afetivos

Apesar de ouvirmos com uma grande freqüência de homens e mulheres, nas diferentes faixas etárias e estratos sócio-culturais, que todos estão em busca de “construir relações afetivas”, o que observamos é que a cada dia as pessoas estão cada vez mais sozinhas e vivendo um sem-números de desencontros em suas vidas. Uma explicação bastante comum é que isto vem acontecendo em função de que as pessoas “não estão dispostas a se comprometerem”. Essas falas apontam para um dos paradoxos que vivemos neste período que os sociólogos e cientistas sociais denominam “pós-modernidade”.
Realmente é paradoxal o fato de que as pessoas buscam construir relações, porém sem precisarem se comprometer. Há uma ambivalência, que estrutura o campo da impossibilidade: onde não há envolvimento, não há construção.
Não é novidade alguma que estamos vivendo tempos de excessivo consumismo: há uma constante e permanente busca por objetos que tragam prazer ilimitado e anulem sentimentos de solidão e desamparo. Conseqüentemente, o que observamos é que também as relações afetivas se tornaram objetos de consumo. Não há a busca pelo encontro com o outro, com a alteridade, mas a busca por um objeto amoroso destinado única e exclusivamente à satisfação das necessidades afetivas individuais. Então, na medida em que este outro é alguém que também tem desejos e necessidades próprias e que também está em busca de satisfazê-las, o que se vivencia nos encontros afetivos atuais é um grande desencontro. Um desencontro entre desejo e realidade que impede a construção de possibilidades de relacionamento a dois.
Quando ouvimos, na nossa clínica, queixas relacionadas à conflitos afetivos, sempre nos deparamos com uma mesma posição: as pessoas estão sempre prontas a apontar no que o outro foi faltante e muito pouco disponíveis a refletir sobre a sua responsabilidade e suas atitudes nesta relação. Há sempre uma busca em transformar o outro naquele objeto idealizado, ainda que disfarçada sob o desejo altruísta de “querer o melhor”.
Muitas vezes podemos observar relações que são mantidas através de um vínculo perverso, agressivo e hostil, onde o único desejo que parece unir o casal é o desejo de destituir o outro de sua auto-estima e capacidade de realização pessoal.
Relacionar-se implica em estabelecer uma relação de cuidados e o que percebemos é que as pessoas querem ser cuidadas... Mas não querem cuidar.
Cuidar não significa “ser responsável por”, mas ter consideração. Considerar o outro nas suas necessidades, nas suas diferenças, nos seus desejos.
Toda relação envolve uma certa quantidade de frustração, mas devemos avaliar se aquilo que chamamos de frustração na relação não esconde, na verdade, uma falta de comprometimento e de responsabilização pessoal pela própria existência...

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Individualidade versus Personalidades narcísicas

A individualidade é algo real e crescente na atualidade. Pode ser definida como a liberdade e a afirmação do indivíduo diante da coletividade. Em tempos anteriores, as pessoas eram submetidas à valores e normas que ditavam a vida em sociedade. As condições às quais eram submetidas, na maioria das vezes, não coincidiam com seus anseios e projetos de vida. As escolhas eram ditadas pela família ou pelas instituições às quais o indivíduo estava vinculado.
Progressivamente, foi-se vendo a conquista da liberdade. Hoje o homem é norteado por sua razão e vontade, e, sem dúvida, esse é um marco e uma grande aquisição de nossa sociedade.
Se por um lado as conquistas do homem contribuíram para uma maior autonomia e liberdade, temos que analisar outros aspectos que podem ser desencadeados pelo individualismo.
A busca pela realização dos desejos tem contribuído cada vez mais para que posturas individualistas acabem ocorrendo de formas extremadas. Ao privilegiar as vontades particulares, acaba-se deixando de lado os interesses coletivos e a evolução humana acaba ficando estancada, ou até mesmo retrocede. Para defender seu espaço, o indivíduo acaba passando por cima do outro. Desde que eu não seja prejudicado, não importa o que aconteça com o outro. Vemos com isso uma crescente falta de empatia, um egoísmo exagerado, uma insensibilidade e uma intolerância evidente. Perde-se a capacidade de se construir em conjunto e como resultado temos pessoas cada vez mais isoladas em seus ‘mundinhos’.
Essa condição atual pode ser verificada na clínica psicológica, ao nos depararmos com indivíduos com personalidades narcísicas. Essas pessoas são caracterizadas por um padrão invasivo de grandiosidade e necessidade de admiração. Em geral são pessoas que superestimam suas capacidades e exageram suas realizações e subestimam a capacidade dos demais, freqüentemente parecendo presunçosos ou arrogantes. São pessoas com fantasias de sucesso ilimitado, poder, inteligência, beleza ou amor ideal. Geralmente exigem admiração excessiva. Os indivíduos com personalidade narcisista em geral carecem de empatia e têm dificuldade em reconhecer os desejos, experiências subjetivas e sentimentos dos outros. Estes indivíduos freqüentemente desprezam e se impacientam com outras pessoas que falam de seus próprios problemas e preocupações. Quando reconhecem as necessidades, desejos ou sentimentos alheios, tendem a vê-los como sinais de fraqueza ou vulnerabilidade.
Entretanto, atrás de um comportamento auto-suficiente, observa-se que sua auto-estima é, quase que invariavelmente, muito frágil. Eles podem preocupar-se com o modo como estão se saindo e no quanto são considerados pelos outros. Isto freqüentemente assume a forma de uma necessidade de constante atenção e admiração.
Diante desses apontamentos, pode-se pensar ainda na grande dificuldade existente nesses indivíduos para se vincularem e construírem relações sólidas de confiança e amor, uma vez que se consideram auto-suficientes e, por isso, não precisam das demais.
Sem dúvida é um quadro de difícil tratamento na medida em que a vinculação é comprometida e verificam-se com freqüência as atuações. Mas nem por isso, impossível de se trabalhar em análise, desde que se atente para as questões transferenciais e contra-transferenciais.
Muito embora o Transtorno de Personalidade Narcísica atinja menos de 1% da população geral, vale fazermos uma pausa para pensarmos na forma como temos conduzido nossas vidas. Se não temos colocado nossas individualidades tão em primeiro plano, ao ponto de nos esquecermos da riqueza em poder compartilhar com o outro nossos desejos, nossas conquistas, nossas angústias. Não podemos nos esquecer de que é a partir das relações que nos construímos e não há nada que substitua essa riquíssima experiência em nossas vidas.
Ana Angélica e Valdeli

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Sobre a função paterna

O Dia dos Pais se aproxima, e não podíamos deixar de comentar sobre a importância que estes têm na formação das crianças e adolescentes.
Durante muito tempo, no ambiente doméstico, a responsabilidade da educação dos filhos era somente das mães. Ao pai, cabia o papel de provedor. Com a necessidade da inserção da mulher no mercado de trabalho, somado ao crescente número de divórcios, passou-se a dar maior atenção ao papel da figura paterna, como de importância ímpar na educação. No entanto, o que observamos é que muitas vezes esta mudança não se faz de forma tranqüila.
O papel de maior participação na educação dos filhos é um papel relativamente novo a ser desempenhado por alguns pais, e por isso mesmo, ainda gera alguns desconfortos, na medida em que muitos desses pais tiveram como modelos pais ausentes ou autoritários. Então, descolar-se deste modelo e criar uma nova forma de ser implica em deparar-se com situações geradoras de angústias e ansiedades.
Algumas vezes, na ânsia de resolver essas questões, alguns pais tentam comportar-se como extensões da figura materna, o que causa uma maior dificuldade no contato com os filhos.
Não obstante, muitas vezes mães têm dificuldades em delegar os cuidados do filho ao pai. Um dos argumentos mais utilizados por essas mães é que “o pai não cuidará do filho como ela cuida”, indicando uma desconfiança quanto à capacidade paterna de cuidar e educar. Diante disso, algumas vezes nos deparamos com situações onde a educação transforma-se em um verdadeiro campo de batalhas onde se travam enormes disputas que causam grandes prejuízos às crianças.
Inegavelmente mães e pais são diferentes, porque homens e mulheres se constituem de forma diferenciada. A questão é que é de fundamental importância que as crianças possam entrar em contato com essas diferenças, pois elas promovem o crescimento, a discriminação e a constituição da identidade.
O pai, com sua forma de ver o mundo, algumas vezes com mais racionalidade e pragmatismo, permite o desenvolvimento de habilidades sociais importantes, além de impor um limite entre mãe/filho de primordial importância na constituição psíquica das crianças. Muitas vezes é através do relacionamento com o pai que a criança adquire maior confiança em si mesma, porque muitas vezes são os pais que as colocam diante de situações desafiadoras, ao contrário das mães, que muitas vezes tentam proteger os filhos destas mesmas situações. É com o pai muitas vezes que a criança aprende a administrar sua agressividade e a desempenhar um papel mais ativo nas experiências que vive com o Outro.
É ilusório acreditar que a mãe pode suplementar o pai ou vice-versa. Cada um tem um papel importante e bem definido na educação, e o papel do pai é tão importante quanto o papel da mãe. Sem dúvida que isso não significa que cada um deve educar como entende que é o correto. Pai e mãe devem estar alinhados no que consideram educar, deve haver uma concordância nos valores e princípios a serem transmitidos, do contrário a educação torna-se caótica. Nesse sentido, o estabelecimento de uma comunicação de qualidade entre os progenitores é essencial.
Educar filhos não é uma competição sobre quem é o melhor, o mais bonzinho, o mais legal. Também não pode ser o lugar em que se disputa o amor filial, nem o campo para se resolver conflitos com as figuras parentais da geração precedente, nem é um campo de auto-afirmação. Educar é formar indivíduos e essa tarefa exige uma grande dose de tolerância, paciência e capacidade de administração de diferenças, e por isso mesmo, quando é compartilhada, torna-se mais suave para todos. Além do mais, crianças tendem a repetir o que vivenciam em suas casas: se são criadas em clima de respeito, tolerância e cumplicidade, certamente se tornarão adultos mais capacitados a administrar as questões relativas aos relacionamentos humanos que a vida lhes impuser.
Valdeli e Ana Angélica

terça-feira, 27 de julho de 2010

Algumas considerações sobre o projeto de lei contra a proibição de castigos corporais à criança

Na semana passada a mídia publicou matérias e resultados de pesquisas que avaliam o projeto de lei que prevê punição aos pais que se utilizarem de castigos físicos para educar os seus filhos. Este se tornou um assunto polêmico, que tem levantado discussões na sociedade sobre a educação das crianças, com posicionamentos inflamados de quem defende uma ou outra posição.
Sem dúvida alguma, o projeto surge como uma tentativa de coibir abusos, na medida em que é do conhecimento de todos que muitas vezes crianças são violentamente espancadas sob a justificativa de que estão sendo educadas. Os que são contrários à “lei da palmada”, como ficou conhecido popularmente esse projeto, argumentam que “as pessoas sabem diferenciar palmadas de espancamentos, que o Estado não tem o direito de se envolver na vida privada das pessoas e que algumas palmadas não traumatizam ninguém”.
Não é nosso desejo levantar novas polêmicas, mas levantar questões para que as pessoas possam refletir de forma mais aprofundada sobre este assunto.
Não faz muito tempo que a criança passou ser vista na nossa sociedade como um ser humano que têm direitos e necessidades. Até 50, 60 anos atrás (e até menos, em algumas sociedades) à criança só cabia obedecer ao que seus pais e educadores determinavam. A educação se fazia pelo medo. As crianças não obedeciam porque entendiam a necessidade de se comportarem desta ou daquela forma, mas porque temiam os castigos que surgiriam se assim o fizessem. Foi somente na década de 60 que a criança passou a ser valorizada na sociedade, muito como conseqüência da disseminação dos estudos nas áreas da Psicologia e Pedagogia. O Estatuto da Criança e do Adolescente, por exemplo, tem somente 18 anos. Isso significa que até então a criança era vista como um objeto dos pais, uma posse destes, e que, portanto, poderia ser manejada em função dos desejos dos pais. É essa idéia que está por trás do argumento de que “os pais podem fazer o que entendem que é mais adequado para a educação das crianças e que o Estado não deve interferir na vida doméstica das famílias”. Sem dúvida alguma, o Estado não deve legislar a vida doméstica. O que ele está tentando fazer é proteger as crianças.
Os pais que defendem o uso das “palmadas” justificam-nas afirmando que eles mesmos já “levaram palmadas” e que entendem, por isso mesmo, que elas não são traumáticas. Uma justificativa que revela um mecanismo de defesa chamado, em Psicanálise, de “identificação com o agressor”: a violência da qual a pessoa foi vítima deixa marcas não elaboradas que fazem com que a pessoa reproduza a situação vivida – o agredido faz-se agressor. Isso, por si, não revelaria a presença do traumático?
A noção de traumatismo em Psicanálise, se refere a um “acontecimento na vida do sujeito que se define pela sua intensidade, pela incapacidade em que se encontra o sujeito de reagir a ele de forma adequada, pelo transtorno e pelos efeitos patogênicos duradouros que provoca na organização psíquica” (Laplanche J. Vocabulário de Psicanálise, São Paulo: Martins Fontes, 1992). Sendo assim, traumático não é somente o que gera graves transtornos, mas aquilo que não pode ser elaborado. Pessoas que entendem que a força e a violência usadas contra uma criança são legitimas, revelam a presença de aspectos não elaborados de sua própria agressividade. Pais que foram criados em um ambiente saudável, continente, acolhedor, ou pais que mesmo tendo vivenciado experiências emocionais similares, conseguiram elaborá-las, não defendem o uso de tal violência.
A violência usada na educação doméstica revela a falência da educação.
O limite é fundamental na educação e a criança pede das mais diferentes formas esses limites, porque o limite delimita, traz segurança, conforta. A questão é que muitas vezes os pais não sabem lidar com limites, não tem coerência na forma com que educam os filhos, o que acaba por gerar crianças autoritárias, agressivas, rebeldes, violentas. Sendo assim, em situações de conflitos estabelece-se o caos familiar, onde a violência gera violência em um ciclo interminável...
A violência é sempre um ato disruptivo e destrutivo: destrói-se a capacidade de comunicação e contato, é uma expressão de raiva de alguém mais forte contra alguém mais frágil e indefeso. Seja uma “palmadinha”, ou uma surra, sempre é um ato violento, em maior ou menor grau, e a violência não tem justificativa.
Algumas pessoas argumentam que existem graus de violência e que devemos ser tolerantes aos graus mais leves desta. Esse argumento parece indicar a direção incoerente em que muitas vezes nossos valores caminham, a saber, a direção de nossos interesses pessoais: à violência que atende aos meus interesses eu sou tolerante, mas não àquela que não atende. Parece-nos ser esta a mesma justificativa usada por aqueles que se utilizam da violência para impor uma determinada ideologia, sistema de governo, religião...
Entendemos que esse projeto de lei pode ser o disparador de uma evolução na educação, na medida em que provoca discussões e reflexões na sociedade, e não o vemos como uma intromissão indevida do Estado. É pouco provável que ele por si só gere mudanças na forma com que alguns pais educam seus filhos. Mas de alguma forma ele chama a atenção dos pais para o fato de que sua função é proteger e cuidar dos seus filhos, e não agredi-los.