terça-feira, 27 de julho de 2010

Algumas considerações sobre o projeto de lei contra a proibição de castigos corporais à criança

Na semana passada a mídia publicou matérias e resultados de pesquisas que avaliam o projeto de lei que prevê punição aos pais que se utilizarem de castigos físicos para educar os seus filhos. Este se tornou um assunto polêmico, que tem levantado discussões na sociedade sobre a educação das crianças, com posicionamentos inflamados de quem defende uma ou outra posição.
Sem dúvida alguma, o projeto surge como uma tentativa de coibir abusos, na medida em que é do conhecimento de todos que muitas vezes crianças são violentamente espancadas sob a justificativa de que estão sendo educadas. Os que são contrários à “lei da palmada”, como ficou conhecido popularmente esse projeto, argumentam que “as pessoas sabem diferenciar palmadas de espancamentos, que o Estado não tem o direito de se envolver na vida privada das pessoas e que algumas palmadas não traumatizam ninguém”.
Não é nosso desejo levantar novas polêmicas, mas levantar questões para que as pessoas possam refletir de forma mais aprofundada sobre este assunto.
Não faz muito tempo que a criança passou ser vista na nossa sociedade como um ser humano que têm direitos e necessidades. Até 50, 60 anos atrás (e até menos, em algumas sociedades) à criança só cabia obedecer ao que seus pais e educadores determinavam. A educação se fazia pelo medo. As crianças não obedeciam porque entendiam a necessidade de se comportarem desta ou daquela forma, mas porque temiam os castigos que surgiriam se assim o fizessem. Foi somente na década de 60 que a criança passou a ser valorizada na sociedade, muito como conseqüência da disseminação dos estudos nas áreas da Psicologia e Pedagogia. O Estatuto da Criança e do Adolescente, por exemplo, tem somente 18 anos. Isso significa que até então a criança era vista como um objeto dos pais, uma posse destes, e que, portanto, poderia ser manejada em função dos desejos dos pais. É essa idéia que está por trás do argumento de que “os pais podem fazer o que entendem que é mais adequado para a educação das crianças e que o Estado não deve interferir na vida doméstica das famílias”. Sem dúvida alguma, o Estado não deve legislar a vida doméstica. O que ele está tentando fazer é proteger as crianças.
Os pais que defendem o uso das “palmadas” justificam-nas afirmando que eles mesmos já “levaram palmadas” e que entendem, por isso mesmo, que elas não são traumáticas. Uma justificativa que revela um mecanismo de defesa chamado, em Psicanálise, de “identificação com o agressor”: a violência da qual a pessoa foi vítima deixa marcas não elaboradas que fazem com que a pessoa reproduza a situação vivida – o agredido faz-se agressor. Isso, por si, não revelaria a presença do traumático?
A noção de traumatismo em Psicanálise, se refere a um “acontecimento na vida do sujeito que se define pela sua intensidade, pela incapacidade em que se encontra o sujeito de reagir a ele de forma adequada, pelo transtorno e pelos efeitos patogênicos duradouros que provoca na organização psíquica” (Laplanche J. Vocabulário de Psicanálise, São Paulo: Martins Fontes, 1992). Sendo assim, traumático não é somente o que gera graves transtornos, mas aquilo que não pode ser elaborado. Pessoas que entendem que a força e a violência usadas contra uma criança são legitimas, revelam a presença de aspectos não elaborados de sua própria agressividade. Pais que foram criados em um ambiente saudável, continente, acolhedor, ou pais que mesmo tendo vivenciado experiências emocionais similares, conseguiram elaborá-las, não defendem o uso de tal violência.
A violência usada na educação doméstica revela a falência da educação.
O limite é fundamental na educação e a criança pede das mais diferentes formas esses limites, porque o limite delimita, traz segurança, conforta. A questão é que muitas vezes os pais não sabem lidar com limites, não tem coerência na forma com que educam os filhos, o que acaba por gerar crianças autoritárias, agressivas, rebeldes, violentas. Sendo assim, em situações de conflitos estabelece-se o caos familiar, onde a violência gera violência em um ciclo interminável...
A violência é sempre um ato disruptivo e destrutivo: destrói-se a capacidade de comunicação e contato, é uma expressão de raiva de alguém mais forte contra alguém mais frágil e indefeso. Seja uma “palmadinha”, ou uma surra, sempre é um ato violento, em maior ou menor grau, e a violência não tem justificativa.
Algumas pessoas argumentam que existem graus de violência e que devemos ser tolerantes aos graus mais leves desta. Esse argumento parece indicar a direção incoerente em que muitas vezes nossos valores caminham, a saber, a direção de nossos interesses pessoais: à violência que atende aos meus interesses eu sou tolerante, mas não àquela que não atende. Parece-nos ser esta a mesma justificativa usada por aqueles que se utilizam da violência para impor uma determinada ideologia, sistema de governo, religião...
Entendemos que esse projeto de lei pode ser o disparador de uma evolução na educação, na medida em que provoca discussões e reflexões na sociedade, e não o vemos como uma intromissão indevida do Estado. É pouco provável que ele por si só gere mudanças na forma com que alguns pais educam seus filhos. Mas de alguma forma ele chama a atenção dos pais para o fato de que sua função é proteger e cuidar dos seus filhos, e não agredi-los.