quarta-feira, 31 de março de 2010

Tragédias anunciadas: algumas consequencias do descaso com a saúde mental

Em 12/03/2010 fomos surpreendidos com o assassinato do cartunista Glauco Vilas Boas, e de seu filho Raoni Ornellas Vilas Boas, ambos cometidos por Carlos Eduardo Sundfeld Nunes. O impacto emocional desse acontecimento tomou a todos, pelos mais diferentes motivos: pela idade das vítimas, pela forma como se deu o crime, pela importância de Glauco no universo cultural brasileiro, e principalmente pela percepção de que essa tragédia poderia ter sido evitada.
Passado o período de comoção, cabe fazermos algumas considerações sobre o fato, no que se refere ao descaso que existe nas famílias, e na sociedade em geral para com aquele que manifestadamente apresenta distúrbios afetivos e de comportamento.
A mídia noticiou reiteradamente ser do conhecimento da família as dificuldades de Carlos Eduardo, bem como o fato de ser usuário de maconha. Somado a isso, havia antecedentes familiares de transtornos mentais, com uma tia-avó e a mãe tendo recebido o diagnóstico de esquizofrenia. No entanto, o comportamento da família ao longo dos anos, consistiu em uma minimização, e uma negação destas dificuldades.
As declarações dos avós, de que sabiam que o neto usava maconha “como fazem hoje 90% dos jovens” (Revista Veja, 24/03/10), é espantosa. Revela uma tendência atual da sociedade não só de não entrar em contato com os problemas, mas em justificá-los através do Outro: se todos usam, então não é preciso preocupação.
Em entrevista concedida pelo pai, a ausência de envolvimento no cuidado com o filho também é marcante. Mesmo após acompanhar o desenvolvimento da doença na mãe de Carlos Eduardo, e sabendo a sua gravidade, não impediu que o filho freqüentasse a Igreja Céu de Maria, onde era consumido o chá alucinógeno de ayahuasca, muito embora ele mesmo o houvesse experimentado e constatado os seus efeitos.
Tanto avós quanto o pai afirmam em entrevista concedidas aos demais veículos de comunicação que já haviam “tentado” levá-lo a psicólogos e psiquiatras, mas que ele se recusava a se submeter a um tratamento, por temer “ficar igual à mãe”.
A esquizofrenia é uma doença mental grave, que se caracteriza por uma grande desorganização dos processos mentais e das funções psíquicas, gerando prejuízos em todas as áreas de competências do indivíduo: na sua capacidade de aprendizagem, de interação social, de efetuar avaliações baseadas no juízo e na crítica, na capacidade de efetuar tarefas e fazer escolhas. O indivíduo pode se tornar incapaz de distinguir a realidade da fantasia. Os períodos de desorganização podem ser intercalados com períodos de remissão da doença, o que não significa que o indivíduo se curou, houve simplesmente um abrandamento temporário dos sintomas. Os sintomas dessa doença podem começar no final da adolescência ou por volta dos 40 anos, sendo seu curso crônico, levando à deterioração da personalidade do indivíduo. Sendo assim, é uma doença que necessita de tratamento médico e psicológico, de medicação e algumas vezes de internação.
Existe muito preconceito em torno da doença mental e dos tratamentos em saúde mental. Na nossa sociedade, as pessoas têm muita resistência em entender que as superações de nossas dificuldades internas não dependem de “vontade ou esforço”, na medida em que existem processos mentais que se desenvolvem no nosso psiquismo e que independem dos nossos desejos ou do nosso nível intelectual. Assim também, existe a crença infundada de que tratamentos médicos psiquiátricos causam dependência. Na verdade, em alguns casos as pessoas precisam tomar uma determinada medicação durante a vida porque detêm uma patologia crônica, que vai evoluir se não for tratada. A medicação não vai levar o indivíduo a um estado de fragilidade psíquica, muito pelo contrário, é o que vai permitir que ele possa usar de uma forma adequada todos os seus recursos pois não estará submetido a processos internos desagregadores. A necessidade de internação, em alguns casos, também deve ser entendida como um cuidado a mais, pois muitas vezes o paciente está tão desorganizado que precisa ser monitorado, precisa de cuidados intensivos que dificilmente a família pode oferecer. A internação também é uma forma de proteger o paciente dele mesmo...
É bem possível que se esses cuidados tivessem sido tomados pela família de Carlos Eduardo, essa tragédia poderia ter sido evitada. Uma tragédia que atingiu não só a vítima e sua família, mas também o agressor e sua família.
Os familiares do agressor alegam que “ele não queria” fazer tratamento, mas será que ele estava em condições mentais de fazer a melhor escolha pra ele naquele momento?
Embora seja sofrido ter um membro familiar querido com transtornos mentais, o tratamento adequado é o melhor cuidado que podemos lhe oferecer, ainda que em alguns momentos à sua revelia.
Isso é preservar a vida, promover saúde mental e evitar as dores desencadeadas por tragédias como essa.

Um comentário:

  1. Delegar ao doente, mental ou não, o dever de procurar um especialista é fugir da responsabilidade da importância que o outro tem em nossa vida, mais ainda, é tirar de nós o que mais temos de humano, a solidariedade. Bjos.

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